quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O único lugar pra sempre

Mesmo sabendo que eu colocaria em risco essas coisas que faço e me soam tão bem. O Pilates, por exemplo, que faço às terças e quintas duas horas após almoçar na minha mãe. Isso me parece um pedaço agradável de uma agenda encantada, dias felizes, nada demais. A aula de dança das segundas e quartas, a acupuntura da sexta, a análise quinta cedinho, o parque do sábado a hora que der na telha, o japonês com a Letícia, meu emprego na televisão e na editora que me permitem mandar em boa parte do meu tempo sem ser, por isso, uma louca duranga, o costume de escrever até tarde ouvindo Beck ou Antony and the Johnsons, os mocinhos que aparecem, com intervalos de dez ou vinte dias, e me abastecem de um gostar possível e descartável, algum bar chato que serve pra me tirar de casa e até mesmo rir de um ou outro ser humano mais parecido com o que eu acho que deveria ser um ser humano. Nada disso me soa banal e aprendi mesmo a chamar de minha vida. Agora serão dias achando tudo idiota e até mesmo medíocre. O Pilates, os almoços em família, os bares, tudo uma tortura. Ainda assim, mesmo sabendo que depois é cheia de dor que carrego minhas horas, ainda assim eu cortei o cabelo um dia antes e comprei uma jaquetinha preta em promoção. Ainda que sentir de verdade pareça uma outra vida, às vezes cansa viver dentro das coisas que invento. Com você, mesmo eu inventando tudo também, dá pra ter essa sensação de desordem, atropelamento, vida dizendo e não minha cabeça falastrona. Mesmo sendo ofensivo pra minha existência que pessoas como você existam. Mesmo que sua tristeza e preguiça e desistência mostrem pra minha frescura de sentidos como tudo pode ser amargo e pior: mostre que tudo sempre foi e eu é que, vai ver, sou forte ou abençoada demais pra não sucumbir. Mesmo que sua alegria nunca seja por mim. E que sua alegria torne, quando por mim, minha vida intolerável. Sua existência é um absurdo e isso é a maior verdade que me vem à mente quando penso em você ou estou ao seu lado.
Passamos a tarde juntos. Foi leve e eu estava quieta, coisa que nunca aconteceu nenhuma das vezes que saímos. Eu estava sempre histérica e hoje eu estava muito quieta, até demais. Talvez seja porque eu não tenho mais a euforia louca de ser amada. Eu piro quando alguém me ama e ao ver em você a calmaria dos vencedores corriqueiros, larguei o corpo. Acabou sendo boa, a sensação de tarde ordinária, encontro ordinário. Eu pude habitar o papel de amiga caminhando ao lado, uma forma de ouvir por perto sua respiração pigarrenta que amo como se fosse o único sopro saudável do mundo. Eu permaneci e isso foi diferente, triste, insuportável, mas possível. Como os mortos que ficam em qualquer lugar, até mesmo embaixo da terra. Morto não deseja e por isso mesmo permanece. Acho que seu desejo morreu e talvez o meu também, já que boa parte desse amor enorme que eu sentia e sinto por você, vinha e venha da minha alegria desmesurada em me sentir amada pelos meus próprios sonhos. Você encerrava em mim eu mesma e era uma loucura tudo, como eu sentia, como eu queria me vomitar e ensanguentar e explodir e rodopiar em mim até furar o chão como uma broca desgovernada e depois sair derrubando o mundo como o único pião que sabe a verdade e precisa chacoalhar seu entorno pra não enlouquecer sozinho. Era uma loucura tudo. Mas a morte, o fim, nós, andando calmos, ao lado um do outro, isso me permitiu estar de alguma forma sem querer habitar cada instante do estar e para isso me retirando o tempo todo. E isso pode ser viver mas viver é terrível. E antes, quando eu não sabia viver e me sentia amada, era ainda mais terrível. Daí que sobra essa sensação de uma solidão filha da puta mil vezes pois em nada dá pra ser com você. E tudo bem, não é você, nunca foi, mas escuta a maluquice: é que nada disso impede que eu sinta um amor absurdo por você.
Me peguei uma hora, olhando você, andar, tão feinho, seu ombro encolheu um pouco, cada dia que passa mais e mais é uma concha o que você se torna. Dessas que é mentira a pérola e o som do mar, mas eu os vejo, o tempo todo. Você andando desse seu jeito meio de louco, que chacoalha a cabeça. E se veste mal quando pouco se importa, eu sei, eu entendi. E a manga suja de café. A roupa bege da cor de tudo que é você. Você é tão errado e cheio de estragos. E me peguei olhando pra tudo isso e amando tanto, tanto, tanto. Como se nada mais no mundo fosse tão bonito ou correto ou mesmo perfeito porque perfeito é o que não tem mesmo cabimento. O resto nem existe porque vemos ou explicamos.
Na sua varanda sem céu, certa vez, você se sentou naquela cadeira sem fundo. Me colocou no seu colo e me deu o abraço que disparava corações em mim como se eu tivesse um em cada nó de veia. E me disse, com sua voz tão bonita, a mais bonita que eu já ouvi, que eu tinha subido todos os seus andares. Eu entendi que você era o homem da cobertura de aço e eu uma espécie rara de passarinho que tinha algum tipo de chave que se autodestruiria em poucos segundos. E eu entendi também que agora que tinha chegado ali, só me restava pular, já que ninguém aguenta o alto tão alto muito tempo. A vertigem que era o nosso amor. Minhas olheiras, meu cansaço, meus quarenta e dois quilos. Eu poderia morrer porque você tinha uma carninha mais mole atrás da sua orelha direita e isso me impossibilitava, dia após dia, que eu vivesse sem sentir você o tempo todo. Mas quem é mesmo que morre dessas coisas? Não, não podemos, com tanta coisa pra fazer, os meninos de dez a vinte dias, os bares, e almoços, o Pilates, a dança, os empregos, escrever, tudo isso que é minha vida antes e depois de você. Tudo isso que daqui a pouco, quando a sensação desgraçada de absurdo e solidão passar, tudo isso volta, se acomoda, a agenda mágica, o gostosinho no peito, esquecer você todo dia um pouco pra vida e todo dia muito pro dia. Mas agora, hoje, guarda isso, eu amo demais você. Por que escrevo? Porque é a minha vingança contra todas as palavras e sensações que morrem todos os dias mostrando pra gente que nada vale de nada. Toma esse texto, o único lugar seguro e eterno pra gente.

Tati Bernardi

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Os Dragões Não Conhecem o Paraíso







"Um band-aid no coração,
Um sorriso nos lábios
E tudo bem."
(CFA)







“Desde a primeira vez que ouvi falar em Aids, quando vi na televisão o anúncio da morte do costureiro Markito, em 1983, percebi que tinha a ver comigo. Na época, a Aids dava exclusivamente em homossexuais e era conhecida como câncer gay. Era ainda uma novidade muito grande. No meu arquivo de memórias, as lembranças da Aids são muito boas. O cantor e compositor Cazuza, tão digno até morrer. Tantos outros que encararam com dignidade a doença.
Queria fazer o teste de HIV, mas morria de medo. Se fosse positivo, tinha medo de morrer logo – sou fácil de sugestionar: estes dias, só de ler nos jornais, estava com os sintomas do Ebola. Ao saber do resultado positivo, enlouqueci, queria me jogar pela janela. Meus amigos ficaram muito assustados e me levaram para o hospital Emílio Ribas, em São Paulo. Com o resultado, fiquei com uma sensação de alívio. Nunca tive vergonha ou neguei. Esta doença é a minha cara. Tem tudo a ver, eu sempre fui tão contemporâneo, sempre estive à frente de tanta coisa. Não podia mesmo morrer de outro jeito. Cosmicamente está certo. Em nenhum momento fiquei me culpando ou perguntando a Deus “Por que comigo, ó Senhor? Que desgraça!”.

Depoimento a Fátima Torri - Revista Marie Claire - Set 1995

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Hoje, dia 12 de setembro de 2011, faria 63 anos. Aos 48, já não era mais possível olhar nos olhos e parabenizar por mais um ano. É um tanto quanto – com o perdão da palavra – desagradável chegar o décimo segundo dia e a gente hesitar em sorrir, olhar pro céu e dizer parabéns. Mas é só por uns segundos, depois passa.
É uma opinião extremamente pessoal essa, de que o mundo perdeu uma das pessoas mais “coração” que já passaram por aqui. Há quem discorde, obviamente; quem não conhece e não entende a essência das suas Pequenas Epifanias.
Mas agora, apesar de tudo, não é hora de se falar em perdas, só em ganhos. Eu falo por mim, por tudo que os seus contos, romances, suas peças, entrevistas me proporcionaram. E de todas as vezes que uma parte da sua vida se encaixou na minha. E de como uso e re-uso o que é seu pra falar de mim, pra falar de alguém, do nada, do dia, do Sol, de tudo. É como se parte de você sempre estivesse presente, falando pra gente não parar de remar, porque a gente remando te faz querer remar também.
Pesa muito, no coração, na mente e na alma, não ter tido a oportunidade de te conhecer tão bem quanto eu queria. Coisas que a gente só pode especular a partir de textos, que eu queria tanto saber, quem sabe um dia vindo de você, mesmo. Me espelho em você mais de metade das vezes, pra ter um milésimo da sua força de vontade, um pedaço de toda a sua coragem. Enfim.
Que você fique sempre bem, onde quer que você esteja. Sorrindo, amando, como foi a vida inteira. Que a gente possa sempre te sentir presente e ter o presente que você sempre foi.

Parabéns pelo seu 63º aniversário, Caio Fernando de Abreu.

sábado, 10 de setembro de 2011

Valsa das Águas Vivas

Hoje o dia está bonito. Tá aquele azul de fim de inverno, não tão frio, como quem diz que logo as flores estão de volta e o sol volta a sorrir mais. As folhas dançam de leve uma valsa com compasso singular. Cheiro de café recém-coado, pão de queijo e um blsuão listrado. São três da tarde e a gente ouve – mesmo que entre carros e pessoas – em pleno centro de São Paulo, o canto dos sabiás.
De uma escultura no Largo São Bento, vejo a beleza escondida por trás da cidade cinza. Um menino desenhando. Não dá pra ver bem o que é. Continuo olhando mesmo assim, na esperança de entender alguma coisa, com a curiosidade de uma criança de cinco anos. O menino vem um pouco mais perto, agora é possível distinguir todos os traços. É uma pessoa. Uma mulher. Mais ao sul, dois cachorros brincando com crianças. Um braço mais pra esquerda, mas não é da mulher com o saiote. A cabeça do desenhista ainda tampa metade do desenho. Aguardo pacientemente até ele colocar o desenho de lado e abrir a pasta para guardá-lo. O braço era de um homem, acolhendo carinhosamente a mulher. Ambos sorriem.
Percebo então a semelhança com o Largo. Uma família moradora do coração da cidade. A mulher sentada nas pedras com o marido, almoçando algo provavelmente vindo daqueles botecos do centro, aqueles restos. Os cães, meio sarnentos, as crianças magras e sujas. Entristeço-me por um minuto, até que olho para a mãe de novo. Ela abraça o marido, e sorri. Apesar de tudo, ela sorri, penso, e não me sinto mais no direito de sentir pena.
Assim como eu, hoje ela pensa que o dia está bonito. Que está aquele azul de fim de inverno, não tão frio, como quem diz que logo as flores estão de volta e o sol volta a sorrir mais. Como eu, apesar de seus pesares, ela vive a utopia de um dia ideal. E não há nada nesse mundo que, nesse momento, seja capaz de roubar sua satisfação.